"Nunca nunca sim sim". Quando criança eu olhava pro chão e imaginava sem fim. Criava pequenos mistérios para cada buraco, pedra ou galho. E girando meu corpo sobre a terra úmida fazia do céu outros tantos mistérios. "Nunca nunca sim sim". Quando criança eu desenhava e não pensava em arte, explorava o mundo a cada traço e cor, explorava o mundo e nada mais. "Nunca nunca sim sim". Quando criança acordei de um sonho triste que confundiu todo o meu ser. Os sonhos pareciam atravessar meu quarto como navios e eu os guardava durante o dia.
Dentro do mar a vida se move lentamente. Posso ouvi-lo da minha cama e quando sonho, atravesso-o como um abraço. Imagino as águas distantes e profundas. Imagino toda a volta da correnteza e o movimento das ondas. Quando o mar traz um pedaço de árvore até a beira da praia é como se ele recomeçasse uma nova paisagem. A areia envolve o que recebe do mar. Sua eterna confiança é fruto do amor. Galhos, bichos mortos, algas, sacos plásticos. A areia recebe e envolve. Deve saber que o encontro não se muda e o percurso cuida de todas as coisas. Já para o mar, o percurso é o próprio encontro. E no alto da noite ele avança até a praia movendo tudo, trazendo e levando. O sal preenche a espera. E dentro do sonho eu escuto que no coração da paisagem moram todos os encontros levados pelo mar.
"Nunca nunca sim sim". Quando criança eu olhava pro chão e imaginava sem fim. Criava pequenos mistérios para cada buraco, pedra ou galho. E girando meu corpo sobre a terra úmida fazia do céu outros tantos mistérios. "Nunca nunca sim sim". Quando criança eu desenhava e não pensava em arte, explorava o mundo a cada traço e cor, explorava o mundo e nada mais. "Nunca nunca sim sim". Quando criança acordei de um sonho triste que confundiu todo o meu ser. Os sonhos pareciam atravessar meu quarto como navios e eu os guardava durante o dia.
No disparo fotográfico o obturador é aberto e o visor é tampado. Assim funciona com algumas câmeras. São milésimos de segundos de escuridão. Alguns dirão que o fotógrafo não vê exatamente aquilo que fotografa. Não chega a ser um exagero já que em fotografias de longa exposição podemos ficar segundos ou minutos sem ver a imagem no visor. Nas fotografias feitas com meio segundo ou suas variações mais rápidas (1/30, 1/60, 1/125,...) esse blecaute costuma parecer como um piscar de olhos, já fotografias com longa exposição, fazendo a mesma analogia, parece um cochilo. Sempre me agradou a ideia de não ver aquilo que é fotografado, sinto a visão supervalorizada na sociedade, e a ideia de fotografar dentro da escuridão renova o próprio olhar. Costuma-se dizer que a ferramenta mais importante do fotógrafo é o olhar, eu desconfio que a principal ferramenta do fotógrafo seja a sua presença diante do mundo. O sentimento de encontro enfeitiça a luminosidade dos cantos. Voltando a ideia do piscar e do cochilo provocados pela máquina fotográfica, imagino o cochilo como um salto para outro lugar. Quando o visor é tampado por segundos ou minutos o pensamento do fotógrafo escapa, viaja para outros espaços, contorna os seus sonhos antigos enquanto a escuridão suspende todas as coisas do mundo. Quando o visor é destampado o obturador se fecha e deixa de receber a luz, o som forte desperta o fotógrafo, a vida não parou.
Minha primeira exposição fotográfica individual foi no MIS-SC em 2005, intitulei-a de "Próximo à Natureza". No livro de visitas uma pessoa escreveu que ao olhar uma fotografia não sabia se tratava de um detalhe ou de uma imagem aérea. Guardei. Quando se olha algo de muito perto pode parecer o universo. Os poros e as galáxias se confundem, o infinito como grãos, pelos e poeira. Diante de um mapa meus devaneios de aventuras logo escapam quando eu toco a superfície do papel. Gosto de confundir as coisas. Por muitas vezes quando acordo fico milésimos de segundo sem saber se estou em Caraguá ou Florianópolis. Outras vezes em meus sonhos encontro uma pessoa e ela está no corpo de outra pessoa. E alguns momentos eu confundo uma música com uma pessoa amada, confundo uma paisagem com uma lembrança antiga, confundo um sorriso com uma floresta inteira.
Faz quase um ano que eu não fotografo. É o período mais longo nos últimos dezenove anos. Já lá no comecinho eu entrava pelo mato buscando mistérios com minha antiga Nikon. Aproximava por encantamento. Hoje eu recupero o ar de um suspiro tão longo quanto a espera. Vai passar. Quando eu olho através do visor da máquina fotográfica é como se a Terra inteira estivesse tranquila. Seu solo e suas águas respeitados. Minha devoção. Quando aperto o botão disparador não procuro imagens, procuro alimentar os mistérios, pedaços daquilo que sonhei e daquilo que encontrei. Uma floresta imensa, tão viva, ampliada na própria riqueza do existir, capaz de encher o peito daqueles que dormem e retornar espalhando esperança.
Sempre imaginei que as coisas valiosas fossem guardadas em lugares mais profundos. Quando penso nisso lembro dos tesouros enterrados no quintal. A bondade atravessa um longo percurso até o seu destino. Tanto num corpo quanto num país. Um instante, uma geração. Carrego o que guardo no fundo dos sonhos. Meu coração é lento. De tempo em tempo cavouco para dentro. Encontro pedaços de esperança. O amor, incansável, me encara. Desenhos de crianças parecem segredos. Abraços parecem durar uma vida. Ninguém solta a mão de ninguém. Resistência é a palavra mais bonita!
Imagino que ao olhar uma coisa essa coisa se transforme, como se algo movesse dentro de si por ser olhada. Não por um poder da visão, ao contrário, talvez pelos percursos invisíveis da natureza. Um abraço de vento, um tropeço de encontro. É como quando alguém nos olha e percebemos que estamos ali, se o olhar tem carinho nosso espírito se enche de alegria rapidamente, mas se o olhar é indiferente podemos sentir uma tristeza ou vazio. Nunca permanecemos igual após sermos atingidos pela atenção. É assim com os bichos, com as árvores e com o mar, é assim com tudo. Certa vez sonhei que carregava um tamanduá ferido e tinha que atravessar um rio. Dentro da água, ora eu carregava ele ora eu era o próprio tamanduá. Enquanto fui tamanduá senti meu coração diferente, como se ele também fosse a água do rio e os braços que me carregava.
A água salgada é a substancia dos meus sonhos. É ela que passeia feito correnteza entre os rostos e as paisagens do meu dormir. Dentro da noite ela traz a umidade necessária para a vida, movendo todas as coisas lentamente, como se cuidasse com carinho das profundezas. Quando eu mergulho não lembro que existo, dentro do sonho não lembro do sono. Quando criança brincava no mar girando dentro da água, girando, girando me engasguei com água pelo nariz, foi quando percebi que eu não era peixe.
Gosto de fotografias sem grandes ambições. Erros de paralaxe. 3x4. Orquídeas no quintal. Quando o fotógrafo registra algo a sua volta é como não estivesse completamente com este. Não gosto de fotos de momentos alegres. Fotografar exige uma concentração e uma distração profunda. A alegria deveria ser olhada nos olhos e abraçada. Guardada de uma forma que só o sorriso pode lembrar. O sacrifício do fotógrafo são os segundos do disparo fotográfico. O fotógrafo não sabe que olhar as coisas com amor é mais valioso que fotografa-las, se divide, se atrapalha e lhe escapa a presença. Pensa congelar o tempo, pensa que o tempo passa, o tempo não passa nem congela, ele simplesmente está. Dentro da claridade é a vida que passa. Gosto de fotografias tiradas por engano, fotografias imaginadas e nunca feitas e gostaria de fotografar somente em meus sonhos.
Não fotografo por meu amor a fotografia,
também não fotografo por meu amor a natureza.
o movimento que percorre os meus sonhos é misterioso,
fotografo com todo amor que posso fotografar
e assim fotografo com minha infância.
Dentro do disparo fotográfico é como se eu não pensasse e como se eu não sentisse ou talvez como se eu pensasse e sentisse tanto mais tanto que só o vazio do meu dedo pudesse agir. Procurei uma analogia para esse instante na vida, sobre o processo de composição e enquadramento, me pareceu difícil, então lembrei o momento em que deitamos na cama e procuramos a melhor posição para dormir, as pernas, os braços, a cabeça, acho que essa procura pode ter algo a ver, não tanto pelo conforto mas sim pelo "agora posso sonhar".
A fotografia digital tornou o processo fotográfico mais rápido e barato, entre outras coisas possibilitou o fotógrafo tirar mais fotos e checar os resultados prontamente. Um cartão de memória pode caber centenas de fotografias ou até milhares e dependendo da frequência com que a câmera é usada ele pode ficar meses dentro dela. Ali pode conter momentos distantes e lugares completamente diferentes. Mas o que me intriga é a primeira e a última fotografia do cartão de memória. Se não apagada, a primeira fotografia permanece no seu lugar, enquanto a última foto é constantemente trocada a cada disparo. As próximas fotografias avançam sempre a partir da última, é a condição da câmera. Ao visualizar na câmera a última fotografia a seguinte é sempre a primeira. Elas são aproximadas em pontos extremos, como uma volta completa do círculo. Na minha imaginação se fosse um rolo de película haveria o risco da sobreposição por dupla exposição. Película do acaso. Da primeira com a última. Nas câmeras 35mm isso pode ocorrer entre fotogramas vizinhos, um fotograma fotografado duas vezes, ou com a imagem posterior ou com a anterior. Ainda poderia ocorrer a dupla exposição parcial. Nela somente uma parte do negativo receberia a imagem seguinte, como um rasgo. O fotógrafo também poderia rebobinar e refotografar o negativo, mas ai já é outra história. Imaginando a primeira e a última imagem do cartão de memória sobrepostas, surgiu uma paisagem e um rosto, sendo difícil saber se a paisagem era mais rosto ou o rosto mais paisagem. De certo o rosto não conhecia a paisagem, não havia estado lá. Como num sonho em que misturamos pessoas conhecidas na infância com pessoas conhecidas recentemente e as levamos para lugares raros. Nessa imagem o rosto não conhece a paisagem, a paisagem é a primeira foto.
De noite todas as coisas sonham. Foi fotografando o mangue do Juqueriquerê que eu percebi os meus passos. Percebi que teria que ter cuidado ao fotografar aquilo que amava. Os pequeninos bichos e plantas não me conheciam. Cuidado é palavra materna e vive dentro de cada um conforme o coração aguenta.
Aquela mania de passar a mão na parede enquanto caminha, acabou. O isolamento sempre foi a minha parte mais fundamental, pensei. Timidez na adolescência. Morar afastado. Um dia inteiro fotografando no meio do mato. Um dia inteiro escutando Disintegration do The Cure. Um dia inteiro assistindo os filmes do Kiarostami. Confundir um som distante com a própria respiração. Repetir o exato movimento desejando o erro. O jogo de ser você e o outro ao mesmo tempo. Pouco a pouco nos acostumamos com a companhia das coisas ao redor. Livros jogados num canto. Um besouro virado pra cima. O tapete de yoga no meio do quarto. O gato dormindo. Caderno de anotações feito de porta copos. As roupas recolhidas do varal sobre o sofá. A chave da motoca, cartões de memória, frasco de álcool gel, lista de compras da semana passada, tudo sobre a mesa da sala. Leva um tempo perceber o próprio guardar. Chegar a um lugar desconhecido e vagar pelas ruas. Olhar para as pessoas e imaginar as suas vidas. Inventar um trajeto fazendo dos passos o asfalto e os prédios. Se perder em ruelas a procura de uma bar. Ir para longe até a natureza. Encontrar um lugar aberto e cheio de luz. Entrar por uma trilha sem saber qual o seu fim. Caminhar com o tempo do encantamento, calmo, eu e minha máquina fotográfica. Deitar no mato. Talvez fotografar, talvez não, sentir que está ali. Criamos pequenos mapas para as coisas que amamos, mapas de se perder dentro da vida. E o mais bonito de tudo é depois rir entre amigos, movidos por música e alegria, num desejo enorme de abraço, sabendo que nunca houve solidão.